quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Democracia de poder absoluto


O trato dos brasileiros com a Política parece remeter ao Leviatã de Hobbes, ou seja, um poder forte, absoluto e necessário de uma figura que não pode ser destituída. Diante de tantos casos de corrupção, não é necessário mudar a postura?

Assuntos relacionados à Política nos levam a um problema muito maior do que propriamente a prática dela no Brasil. Afinal, o problema é cultural, pois o processo histórico no país fez com que a população sempre ficasse à margem das grandes decisões políticas. A apatia política do brasileiro faz com que o cenário de exclusão social, corrupção e falta de infraestrutura cada vez aumente mais. Na verdade, isso só ocorre porque Política nunca foi um assunto público, mas sim algo remoto a poucos intelectuais ou àqueles que se dedicam a ela. Há no imaginário popular, no inconsciente coletivo brasileiro, uma ideia de que Política não é algo do dia a a dia, mas apenas e tão somente algo para ser lembrado de dois em dois anos. A Política não é algo material, algo da realidade popular brasileira, principalmente nos anos que se seguiram à ditadura militar da segunda metade do século XX. Para os brasileiros, o poder obtido por aqueles que são eleitos é algo irrevogável, inalienável. Mesmo que na teoria o país seja uma República democrática, na qual o poder dos representantes dos cargos legislativos e executivos emana do povo, na prática o povo parece ter pouca consciência disso.
Há uma ideia de que o poder é absoluto nas mãos dos governantes. Não à toa, a população acaba por fazer um grande alvoroço em torno do poder executivo, de forma especial, da figura do presidente da República, como se este fosse um salvador, uma pessoa que por simples decreto conseguiria resolver todos os problemas da nação. Se na teoria nosso país é democrático, na prática, na mentalidade da população, somos ainda uma monarquia. Em grande parte, isso acaba por permitir que o poder Legislativo seja encarado como algo sem importância e a eleição desses representantes seja apenas realizada para cumprir um protocolo. Ideias como essas prejudicam muito o desenvolvimento da Política no Brasil. Esse messianismo político presente no imaginário brasileiro impede que se veja a Política de uma forma séria e, mais ainda, impede seu desenvolvimento, sua verdadeira transformação, que levaria à realização desta como ela deveria ser, ou seja, voltada ao bem comum, ao desenvolvimento da nação como um todo, e não um espaço de corrupção, como muitas vezes acaba sendo.


Rodrigo dos Santos Manzano é graduado em Filosofia pela UNIFAI e professor de Filosofia do SESI-SP e da rede pública do Estado de São Paulo 

domingo, 14 de setembro de 2014

O homem; as viagens (Carlos Drummond de Andrade)

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

A teoria do conhecimento na Idade Moderna

Da Antigüidade até o início do Renascimento, embora tenham surgido várias teorias a respeito de como se efetua o conhecimento, não há discordância sobre a possibilidade de o homem conhecer o real. Do ponto de vista epistemológico, esta é a posição realista, em que os objetos correspondem plenamente ao conteúdo da percepção.
O Renascimento, entretanto, vai trazer grandes modificações, dentre as quais vale destacar:
• a separação entre fé e razão, que vai levar ao desenvolvimento do método científico para o estudo das ciências naturais;
• o antropocentrismo, que estabelece a razão humana como fundamento do saber;
• o interesse pelo saber ativo, em oposição ao saber contemplativo, que leva à transformação da natureza e ao desenvolvimento das técnicas.
No rastro dessas mudanças, os pensadores do século XVII abordam a temática do conhecimento de modo inteiramente novo, colocando em questão a própria possibilidade do conhecimento. Não se trata mais de saber qual é o objeto conhecido. Deve-se, agora, indagar sobre o sujeito do conhecimento: quais as possibilidades de engano e acerto? quais os métodos que podemos utilizar para garantir que o conhecimento seja verdadeiro?
As respostas a essas indagações dão origem a duas correntes filosóficas diametralmente opostas, a saber, o racionalismo e o empirismo.
O racionalismo
O principal representante do racionalismo no século XVII é o francês René Descartes, que, descontente com os erros e ilusões dos sentidos, procura o fundamento do verdadeiro conhecimento. Assim, estabelece a dúvida como método de pensamento rigoroso. Duvida de tudo que lhe chega através dos sentidos, duvida de todas as idéias que se apresentam como verdadeiras. À medida que duvida, porém, descobre que mantém a capacidade de pensar. Por essa via, estabelece a primeira verdade que não pode ser colocada em dúvida: se duvido, penso, se penso, existo, embora esse existir não seja físico. Existo enquanto ser pensante (sujeito ou consciência) que é capaz de duvidar. Formula esta descoberta em uma frase muito conhecida: Penso, logo existo.
A partir dessa primeira verdade intuída, isto é, concebida "por um espírito puro e atento, tão fácil e distinta, que nenhuma dúvida resta sobre o que compreendemos", Descartes diferencia dois tipos de idéias: algumas claras e distintas, outras confusas e duvidosas. Propõe, então, que as idéias claras e distintas, que são idéias gerais, não derivam do particular, mas já se encontram no espírito, como instrumentos com que Deus nos dotou para fundamentar a apreensão de outras verdades. Essas são as idéias inatas, que não estão sujeitas a erro e que são o fundamento de toda ciência. Para conhecê-las basta que nos voltemos para nós mesmos, através da reflexão.
Dentre as idéias inatas, encontramos as de um Deus Perfeito e Infinito (substância infinita), da substância pensante e da matéria extensa.
O ponto de partida de Descartes é, pois, o pensamento, abstraindo toda e qualquer relação entre este e a realidade. Como passar, porém, do pensamento para a substância extensa, ou seja, a matéria dos corpos?
Exatamente porque pensamos, podemos pensar a idéia de infinito, ou seja, de Deus, com todos os seus atributos, dentre os quais está a perfeição. Ora, para ser perfeito, Deus deve existir. Da idéia de Deus, passamos a poder afirmar sua existência enquanto ser. Continuando o raciocínio, esse ser perfeito não nos engana e, se nos faz ter idéias sobre o mundo exterior, inclusive sobre nossos corpos, é porque criou esse mesmo mundo exterior e sensível. Assim, a partir de uma idéia inata, podemos deduzir a idéia da existência da matéria dos corpos, ou seja, da substância extensa.
Devemos notar, entretanto, que a razão não afeta nem é afetada pelos objetos. A razão só lida com as representações, isto é, com as imagens mentais, idéias ou conceitos que correspondem aos objetos exteriores.
É neste ponto que se coloca, com maior nitidez, a necessidade do método para garantir que a representação corresponda ao objeto representado. O método deve garantir que:
• as coisas sejam representadas corretamente, sem risco de erro;
• haja controle de todas as etapas das operações intelectuais;
• haja possibilidade de serem feitas deduções que levem ao progresso do conhecimento.
Assim, a questão do método de pensamento toma-se crucial para o conhecimento filosófico a partir do século XVII. O modelo é o ideal matemático, não porque lide com números ou grandezas matemáticas, mas porque, fiel ao sentido grego de ta mathema, visa o conhecimento completo, perfeito e inteiramente racional.
O empirismo
Em reação ao racionalismo cartesiano, principalmente à teoria das idéias inatas, John Locke escreve, em 1690, o Ensaio sobre o entendimento humano, no qual defende que todas as idéias têm origem na experiência sensível. É a partir dos dados da experiência que, por abstração, o entendimento, ou intelecto, produz idéias. A razão humana é vista como uma folha em branco sobre a qual os objetos vão deixar sua impressão sensível que será elaborada, através de certos procedimentos mentais, em idéias particulares e idéias gerais.
Entretanto, o mecanismo íntimo do real ultrapassa os limites de toda experiência possível, isto é, podemos observar os fenômenos, mas não suas causas ou suas relações.
Para Locke, todas as nossas idéias provêm de duas fontes: a sensação e a reflexão, A sensação apreende impressões vindas do mundo externo. A reflexão é o ato pelo qual o espírito conhece suas próprias operações.
As idéias podem ser simples e complexas. As idéias simples são aquelas que se impõem à consciência na experiência sensível e são irredutíveis à análise. Ao correlacionar idéias simples, o espírito constitui as idéias complexas.
David Hume, filósofo escocês, leva mais adiante o empirismo de Locke, afirmando que as relações são exteriores aos seus termos. Explicando, as relações não são observáveis, portanto não estão nos objetos. Elas são modos que a natureza humana tem de passar de um termo a outro, de uma idéia particular a outra. E esses modos são fruto do hábito ou da crença.
Por exemplo, tendo observado a água ferver a 100 graus, podemos dizer que toda água sempre ferve a 100 graus. Ou, vendo o sol nascer todos os dias, assumimos que amanhã também nascerá. O que observamos, no entanto, é uma seqüência de eventos, sem nexo causai. O que nos faz ultrapassar o dado e afirmar mais do que pode ser alcançado pela experiência é o hábito criado através da observação de casos semelhantes, a partir do que imaginamos que este caso se comporte da mesma forma que os outros.
Assim, a única base para as idéias ditas gerais é a crença, que, do ponto de vista do entendimento, faz uma extensão ilegítima do conceito.

(texto retirado do livro Temas de Filosofia, de Maria Lucia Aranha e Maria Helena Pires Martins, Ed Moderna: 1992)