segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Primeiros Filósofos - Pré-Socráticos ou Filósofos da Natureza

Os mitos, como vimos anteriormente, consistiam numa narrativa acerca da origem: do mundo, dos deuses e dos próprios seres humanos. Dizemos que tais mitos compunham uma Cosmogonia, ou seja, uma narrativa acerca do nascimento do universo. Em oposição à cosmogonia surge, entre os primeiros filósofos, o que chamamos Cosmologia, ou seja, uma tentativa de explicação racional e sistemática do universo. Os primeiros filósofos, conhecidos como filósofos da natureza e também pré-socráticos, buscavam o princípio substancial ou substância primordial (a arché, em grego) que julgavam existir em todos os seres materiais. Se perguntavam, basicamente, qual seria a matéria prima que constituía todas as coisas.

                 “Entre os que primeiro filosofaram, a maior parte julgou que eram princípios de todas as coisas apenas os princípios em forma de matéria. De fato, o item primeiro de que tudo se constitui, do qual tudo vem a ser e no qual, por último, tudo se corrompe, eis o que afirmam ser elemento e princípio dos entes” Aristóteles (Metafísica I, Aristóteles, trad. Lucas Angioni).


Tales de Mileto (623 -546 a.C.)
                A fama de Tales como geômetra nos é conhecida desde os anos iniciais do ensino fundamental. No entanto, desde a antiguidade, Tales é considerado o primeiro filósofo. Já Aristóteles, no livro I da Metafísica, assim afirma: “De fato, Tales, o iniciador desse tipo de filosofia, afirma que é a água [o princípio de todas as coisas]”. Como afirma Cotrim, “para Tales, a água, por permanecer basicamente a mesma, em todas as transformações dos corpos, apesar de assumir diferentes estados (sólido, líquido e gasoso), seria a arché, a substância primordial, a origem única de todas as coisas, presente em tudo o que existe”[1].  Apesar de parecer estranha a proposta de Tales, temos de reconhecer nela uma tentativa de fugir das antigas explicações mitológicas sobre a criação do mundo, apoiando-se num princípio físico que fosse constante em todas as coisas, algo que passa a funcionar como um princípio unificador de todos os seres. 

Anaximandro de Mileto (610-547 a.C)
             Anaximandro procurou  aprofundar as concepções do mestre sobre a origem única de todas as coisas, mas, diferentemente de Tales, ele julgava que o princípio (arché) de tudo não podia ser um dos elementos observáveis no mundo natural. Para Anaximandro, o princípio primordial seria algo que transcendesse os limites do observável, ou seja, não estaria ao alcance dos sentidos, como era o caso da água de Tales. O filósofo propôs o ápeiron, o indeterminado ou ilimitado como principio de todas as coisas. 

                  “Dentre os que afirmam que há um princípio, móvel e ilimitado, Anaximandro, filho de Praxíades, de Mileto, sucessor e discípulo de Tales, disse que o ápeiron (ilimitado) era o princípio e o elemento das coisas existentes. Foi o primeiro a introduzir o termo princípio. Diz que este não é a água nem algum dos chamados elementos, mas alguma natureza diferente, ilimitada, e dela nascem os céus e os mundos neles contidos” Simplício (Física, trad. Wilson Regis em Os Pensadores: Os Pré-Socráticos, Vol. 1, Editora Abril,1989 ).



Anaxímenes de Mileto (588-524 a.C.)
Assim como seu mestre Anaxímandro, Anaxímenes admitia que a origem de todas as coisa é indeterminada, no entanto, ele se recusava a atribuir o princípio de todas as coisas a algo que estivesse fora dos limites da observação ou da experiência sensível.
Vemos em Anaxímenes uma tentativa de conciliar as concepções de Tales e as de Anaximandro: o ar é um elemento invisível, quase inobservável, no entanto, ele é observável na medida em que é a própria vida, a força vital que anima o mundo, percebido na respiração. 

Heráclito: fogo e devir (435-475 a.C)
             Heráclito, nascido em Éfeso, na Jônia,também era um estudioso da natureza e procurava a arché de todas as coisas. Assim como os filósofos de Mileto, Heráclito observava que a realidade é dinâmica e que a vida estava em constante transformação. No entanto, ao invés de seguir o caminho daqueles pensadores, e procurar encontrar aquilo que permanece ou subsiste à transformação,Heráclito se concentrou naquilo que muda.

                               “Não se pode entrar no mesmo rio duas vezes,nem substância mortal tocar duas vezes na mesma condição”“Aos que entram nos mesmos rios outras e outras águas afluem”. Heráclito, Fragmentos, Os Pensadores: Os Pré-Socráticos, Vol 1, Editora Nova Cultural, 1989.

Parmênides de Eléia (510-470 a.C.)
           Parmênides nasceu numa região que hoje corresponde à Itália, foi discípulo de Pitágoras, e combateu a teoria mobilista dos filósofos jônicos, principalmente o mobilismo de Heráclito. Chegou até nós fragmentos de seu poema, Sobre a Natureza, fonte para nosso conhecimento de sua teoria.
De acordo com Parmênides, o movimento e a transformação postulado por Heráclito não passava de ilusão, ou ainda, seria apenas uma visão superficial da realidade. Se conseguimos superar nossa experiência sensível, nossa visão imediata das coisas, descobriremos, através do pensamento, que a verdadeira realidade é única, imóvel, eterna e imutável, sem princípio nem fim, contínua e indivisível. Atribui-se a Parmênides a introdução da distinção entre aparência e realidade no pensamento filosófico. Parmênides apresenta dois importantes argumentos contra o mobilismo:
a) o movimento é apenas aparente, um aspecto superficial das coisas (segue-se da distinção entre aparência e realidade);
b) só podemos entender a mudança se há algo de estável que permanece e me permite identificar o objeto como o mesmo – argumento de caráter lógico, sustenta a prioridade da permanência em relação ao movimento.
Parmênides é considerado o precursor da Metafísica, área da filosofia que se dedica a estudar o ser ou reaidade última das coisas.

Empédocles (490-430 a.C)
Empédocles esforçou-se para conciliar as concepções de Parmênides e Heráclito. Aceitava de Parmênides a racionalidade que afirmava a existência e permanência do ser, mas procurava encontrar uma maneira de tornar racional os dados dos sentidos.
Defendeu a existência de quatro elementos primordiais, que constituem as raízes de todas as coisas percebidas: fogo, terra, ar e água. Esses elementos seriam movidos e misturados de diferentes maneiras em função de dois princípios universais opostos, o amor (philia), força de atração e união e o ódio (neikos), força de repulsão e desagregação.

Demócrito (460-370 a.C)
Embora tenha vivido na mesma época de Sócrates, Demócrito é considerado um pré-socrático, uma vez que sua filosofia é marcada pela temática própria daqueles filósofos, a saber, a busca da arché ou princípio explicativo de tudo o que existe.
Juntamente com seu mestre Leucipo, Demócrito desenvolveu a doutrina conhecida pelo nome de atomismo. Segundo essa doutrina, todas as coisas que formam a realidade são constituídas por partículas invisíveis e indivisíveis, chamadas átomos, que em grego significa 'não divisível'.


Observação: as informações acima foram retiradas do livro Fundamentos da Filosofia, de Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes, alguns trechos com modificações e outros retirados na íntegra.




[1] COTRIM, G.,FERNANDES, M.  Fundamentos de Filosofia,Volume Único, Editora Saraiva.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Descobrindo o Eu Racional

Fazia já um tempo que Letícia vinha sendo perturbada por certas questões estranhas. Tudo tinha começado há umas duas semanas, na aula de filosofia. O professor propôs um desafio para a turma: prove que você existe. Eles teriam que entregar um trabalho no final do mês a partir das reflexões que fizessem sobre o assunto, apresentando as tais provas. Letícia estava bastante confusa, mas algumas ideias rondavam sua cabeça, se estava no caminho certo, não tinha a menor noção...
No começo, Letícia, assim como seus colegas, achou que o professor estivesse brincando. Que ideia era aquela? Como assim provar que eu existo? Eu existo e pronto! E que seus colegas existiam, bastava o professor se lembrar das muitas algazarras feitas por eles e das peças que já pregaram nele. Será que já tinha se esquecido da vez que deixaram um copo de água em cima da porta levemente encostada e quando ele empurrou a porta para entrar, foi aquele banho? Afinal, aquela água gelada na cabeça não era prova o suficiente de que eles existiam? Mas o professor insistiu. E veio com outros desafios ainda mais esquisitos: prove que você não está num sonho agora; prove que você não é um programa de computador desenvolvido para pensar esta realidade.
Talvez por ter 16 anos e fazer parte de uma geração que nasceu grudada ao computador, Letícia começou pelo último desafio: seria possível ela ser um programa de computador desenvolvido para pensar esta realidade? Nossa, que viagem! Letícia já tinha pensando algumas vezes que poderia ser como um daqueles bonequinhos de teatro infantil manipulados por alguém através de linhas invisíveis. Mas um programa de computador?  Também essas ideias malucas levavam a outros questionamentos: Quem teria criado o programa de computador? No caso dos bonequinhos, quem estaria manipulando as linhas invisíveis?...
- É isso! - disse Letícia, de repente, enquanto dava um salto de sua cama. - Fosse como fosse, o fato de pensar já não seria prova de alguma coisa? Ou seja, ela parece que tinha resolvido o primeiro desafio: provar que existia. Letícia continuo falando em voz alta, enquanto caminhava pelo quarto:
- Não importa muito o que eu sou, posso até ser um programa de computador, mas uma vez que eu penso, isso é uma prova de que eu sou alguma coisa, ou melhor, é uma prova de que eu existo! Não importa quanta besteira eu pense, mas, se eu penso, não dá para negar que existe alguma coisa responsável por esses pensamentos! Então, é isso: se eu penso, eu existo. Sou alguma coisa pensante...
Letícia estava eufórica! Precisava ligar pra Natália imediatamente. Será que a amiga concordaria com ela? Será que a Natália também já tinha pensado nisso? Nossa, o professor de filosofia era mesmo figura... Agora Letícia estava louca de curiosidade para saber onde aquela história toda ia dar...E quanto ao sonho? Será que funcionaria o mesmo raciocínio? Enquanto ligava para Beatriz, Letícia se perguntava: será que encontrei a solução para o desafio? ...
Francine Ribeiro


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O mito de Narciso

Narciso

Quando Narciso nasceu, sua mãe, uma ninfa belíssima, consultou o adivinho Tirésias para saber se aquele filho de extraordinária beleza viveria até o fim de uma longa velhice. Pareceram sem sentido as suas palavras:
— Sim, se ele não chegar a se conhecer.
Narciso cresceu, sempre formoso. Jovem, muitas moças e ninfas queriam o seu amor, mas o rapaz desprezava a todas.
Um dia, Narciso caçava na floresta quando a ninfa Eco o viu. Eco, por causa de uma punição que Hera lhe infligira, só era capaz de usar da voz para repetir os sons das palavras dos outros. Ao se deparar com a beleza de Narciso, a ninfa se apaixonou por ele e se pôs a segui-lo. Quando resolveu manifestar o seu amor, abraçando-o, Narciso a repeliu.
Desprezada e envergonhada, Eco se escondeu nos bosques com o rosto coberto de folhagens. O amor não correspondido a foi consumindo pouco a pouco, até que, depois de reduzida a pele e osso, seu corpo se dissipou nos ares. Restou-lhe, apenas, a voz e os ossos, que, segundo dizem, tomaram a forma de pedras.
Um dia, uma das muitas jovens desprezadas por Narciso, erguendo as mãos para o céu, disse:
— Que Narciso ame também com a mesma intensidade sem poder possuir a pessoa amada!
Nêmesis, a divindade punidora do crime e das más ações, escutou esse pedido e o satisfez.
Havia uma fonte límpida, de águas prateadas e cristalinas, de que jamais homem, animal ou pássaro algum se tinham aproximado. Narciso, cansado pelo esforço da caça, foi descansar por ali. Ao se inclinar para beber da água da fonte, viu, de repente, sua imagem refletida na água e encantou-se com a visão.
Fascinado, quedou imóvel como uma estátua, contemplando seus próprios olhos, seus cabelos dignos de Dioniso  ou Apolo, suas faces lisas, seu pescoço de marfim, a beleza de seus lábios e o rubor que cobria de vermelho o rosto de neve. Apaixonou-se por si mesmo, sem saber que aquela imagem era a sua, refletida no espelho das águas.
Nada conseguia arrancar Narciso da contemplação, nem fome, nem sede, nem sono.
Várias vezes lançou os braços dentro da água para tentar inutilmente reter com um abraço aquele ser encantador. Chegou a derramar lágrimas, que iam turvar a imagem refletida. Desesperado e quase sem forças, foram estas suas últimas palavras:
— Ah!, menino amado por mim inutilmente! Adeus!
O lugar em que estava fez ecoar o que dissera. E quando proferiu “Adeus!”, Eco também disse “Adeus!”.
Em seguida, esgotado, Narciso se deitou sobre a relva, e a Noite veio fechar seus olhos. Diz-se que, nos Infernos, Narciso continua a contemplar sua imagem refletida nas águas do rio Estige.
As ninfas, juntamente com Eco, choraram tristemente pela morte de Narciso. Já preparavam para o seu corpo uma pira quando notaram que desaparecera. No seu lugar, havia apenas uma flor amarela, com pétalas brancas no centro.

Quedar (ou quedar-se): deter-se, ficar parado.
Dioniso: na mitologia latina, Baco, deus do vinho.

Narciso é outro mito que reaparece constantemente nas artes. Em Sampa, de Caetano Veloso, há esta passagem, na qual o poeta descreve a primeira impressão negativa que teve ao ver a cidade de São Paulo:

“Quando eu te encarei frente a frente,
Não vi o meu rosto,
Chamei de mau gosto
O que vi, de mau gosto, mau gosto.
É que Narciso acha feio
O que não é espelho...”


(Vasconcelos, Paulo Sergio, Mitos Gregos, Coleção Objetivo, Editora Sol, p. 16-18)

Narciso (1594-1595) - Caravaggio 

                                                                                                      Postado por profª Francine