Da Antigüidade até o início do
Renascimento, embora tenham surgido várias
teorias a respeito de como se efetua o conhecimento, não há discordância sobre
a possibilidade de o homem conhecer o real. Do ponto de vista epistemológico,
esta é a posição realista, em que os objetos correspondem plenamente ao
conteúdo da percepção.
O Renascimento, entretanto, vai trazer grandes modificações, dentre
as quais vale destacar:
• a separação entre fé e razão, que vai levar ao desenvolvimento do
método científico para o estudo das ciências naturais;
• o antropocentrismo, que estabelece a razão humana como fundamento
do saber;
• o interesse pelo saber ativo, em oposição ao saber contemplativo,
que leva à transformação da natureza e ao desenvolvimento das técnicas.
No rastro dessas mudanças, os pensadores do século XVII abordam a temática do conhecimento de
modo inteiramente novo, colocando em questão a própria possibilidade do
conhecimento. Não se trata mais de saber qual é o objeto conhecido. Deve-se,
agora, indagar sobre o sujeito do conhecimento: quais as possibilidades de
engano e acerto? quais os métodos que podemos utilizar para garantir que o
conhecimento seja verdadeiro?
As respostas a essas indagações dão origem a duas correntes
filosóficas diametralmente opostas, a saber, o racionalismo e o empirismo.
O racionalismo
O principal representante do racionalismo no século XVII é o francês René Descartes, que,
descontente com os erros e ilusões dos sentidos, procura o fundamento do
verdadeiro conhecimento. Assim, estabelece a dúvida
como método de pensamento rigoroso. Duvida de tudo
que lhe chega através dos sentidos, duvida de todas as idéias que se apresentam
como verdadeiras. À medida que duvida,
porém, descobre que mantém a capacidade de
pensar. Por essa via, estabelece a primeira verdade que não pode ser colocada
em dúvida: se duvido, penso, se penso, existo, embora esse existir não seja
físico. Existo enquanto ser pensante (sujeito ou consciência) que é capaz de
duvidar. Formula esta descoberta em uma frase muito conhecida: Penso, logo existo.
A partir dessa primeira verdade intuída, isto é,
concebida "por um espírito puro e atento, tão fácil e distinta, que
nenhuma dúvida resta sobre o que compreendemos", Descartes diferencia dois
tipos de idéias: algumas claras e distintas, outras confusas e duvidosas.
Propõe, então, que as idéias claras e distintas, que são idéias gerais, não
derivam do particular, mas já se encontram no espírito, como instrumentos com que Deus nos
dotou para fundamentar a apreensão de outras verdades. Essas são as idéias
inatas, que não estão sujeitas a erro e que são o fundamento de toda ciência.
Para conhecê-las basta que nos voltemos para nós mesmos, através da reflexão.
Dentre as idéias inatas, encontramos as de um Deus Perfeito e
Infinito (substância infinita), da substância pensante e da matéria extensa.
O ponto de partida de Descartes é, pois, o pensamento, abstraindo
toda e qualquer relação entre este e a realidade. Como passar, porém, do
pensamento para a substância extensa, ou seja, a matéria dos corpos?
Exatamente porque pensamos, podemos pensar a idéia de infinito, ou
seja, de Deus, com todos os seus atributos, dentre os quais está a perfeição.
Ora, para ser perfeito, Deus deve existir. Da idéia de Deus, passamos a poder
afirmar sua existência enquanto ser. Continuando o raciocínio, esse ser
perfeito não nos engana e, se nos faz ter idéias sobre o mundo exterior,
inclusive sobre nossos corpos, é porque criou esse mesmo mundo exterior e sensível.
Assim, a partir de uma idéia inata, podemos deduzir a idéia da existência da
matéria dos corpos, ou seja, da substância extensa.
Devemos notar, entretanto, que a razão não afeta nem é afetada pelos
objetos. A razão só lida com as representações, isto é, com as imagens mentais,
idéias ou conceitos que correspondem aos objetos exteriores.
É neste ponto que se coloca, com maior nitidez, a necessidade do
método para garantir que a representação corresponda ao objeto representado. O
método deve garantir que:
• as coisas sejam representadas corretamente, sem risco de erro;
• haja controle de todas as etapas das operações intelectuais;
• haja possibilidade de serem feitas deduções que levem ao progresso
do conhecimento.
Assim, a questão do método de pensamento toma-se crucial para o
conhecimento filosófico a partir do século XVII. O modelo é o ideal matemático,
não porque lide com números ou grandezas matemáticas, mas porque, fiel ao
sentido grego de ta mathema, visa o conhecimento completo, perfeito e inteiramente racional.
O
empirismo
Em reação ao racionalismo cartesiano, principalmente à teoria das
idéias inatas, John Locke escreve, em 1690, o Ensaio
sobre o entendimento humano, no qual defende
que todas as idéias têm origem na experiência
sensível. É a partir dos dados da experiência que, por
abstração, o entendimento, ou intelecto, produz idéias. A razão humana é vista
como uma folha em branco sobre a qual os objetos vão deixar sua impressão
sensível que será elaborada, através de certos procedimentos mentais, em idéias
particulares e idéias gerais.
Entretanto, o mecanismo íntimo do real ultrapassa os limites de toda
experiência possível, isto é, podemos observar os fenômenos, mas não suas
causas ou suas relações.
Para Locke, todas as nossas idéias provêm de duas fontes: a sensação e a reflexão, A sensação apreende impressões
vindas do mundo externo. A reflexão é o ato pelo qual o espírito conhece suas próprias operações.
As idéias podem ser simples e complexas. As idéias simples são
aquelas que se impõem à consciência na experiência sensível e são irredutíveis
à análise. Ao correlacionar idéias simples, o espírito constitui as idéias complexas.
David Hume, filósofo escocês, leva mais adiante o empirismo de Locke,
afirmando que as relações são exteriores aos seus termos. Explicando, as
relações não são observáveis, portanto não estão nos objetos. Elas são modos
que a natureza humana tem de passar de um termo a outro, de uma idéia
particular a outra. E esses modos são fruto do hábito ou da crença.
Por exemplo, tendo observado a água ferver a 100 graus, podemos dizer
que toda água sempre ferve a 100 graus. Ou, vendo o sol nascer todos os dias,
assumimos que amanhã também nascerá. O que observamos, no entanto, é uma seqüência
de eventos, sem nexo causai. O que nos faz ultrapassar o dado e afirmar mais do
que pode ser alcançado pela experiência é o hábito criado através da observação
de casos semelhantes, a partir do que imaginamos que este caso se comporte da
mesma forma que os outros.
Assim, a única base para as idéias ditas gerais é a crença, que, do
ponto de vista do entendimento, faz uma extensão ilegítima do conceito.
(texto retirado do livro Temas
de Filosofia, de Maria Lucia Aranha e Maria Helena Pires Martins, Ed
Moderna: 1992)