quarta-feira, 21 de maio de 2014

Sofista (Platão) - trecho selecionado

Sofista
Platão

ESTRANGEIRO
[...] Possuímos, na verdade, para exprimir vocalmente o ser, dois gêneros de sinais.
TEETETO
— Quais?
ESTRANGEIRO
— Os nomes e os verbos, como os chamamos.
TEETETO
— Explica tua distinção.
ESTRANGEIRO
— O que exprime as ações, nós chamamos verbo.
TEETETO
— Sim.
ESTRANGEIRO
— Quanto aos sujeitos que executam essas ações, o sinal vocal que a eles se aplica é um nome.
TEETETO
— Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
— Nomes apenas, enunciados de princípio a fim, jamais formam um discurso, assim como verbos enunciados sem o acompanhamento de algum nome.
TEETETO — Eis o que eu não sabia.
ESTRANGEIRO
— É que, certamente, tinhas outra coisa em vista, dando-me, há pouco, teu assentimento; pois o que eu queria dizer era exatamente isso: enunciados numa seqüência como esta, eles não formam um discurso.
TEETETO
— Em que seqüência?
ESTRANGEIRO
— Por exemplo, anda, corre, dorme, e todos os demais verbos que significam ação; mesmo dizendo-os todos, uns após outros, nem por isso formam um discurso.
TEETETO
— Naturalmente.
ESTRANGEIRO
— E se dissermos ainda: leão, cervo, cavalo, e todos os demais nomes que denominam sujeitos executando ações, há, ainda aqui, uma série da qual jamais resultou discurso algum; pois, nem nesta, nem na precedente, os sons proferidos indicam nem ação, nem inação, nem o ser, de um ser, ou de um não-ser, pois não unimos verbos aos nomes. Somente unidos haverá o acordo e, desta primeira combinação nasce o discurso que será o primeiro e mais breve de todos os discursos.
TEETETO
— Que entendes com isso?
ESTRANGEIRO
— Ao dizer: o homem aprende não reconheces ali um discurso, o mais simples e o primeiro?
TEETETO
— Para mim, sim.
ESTRANGEIRO — E que, desde esse momento, ele nos dá alguma a indicação relativa a coisas que são, ou se tornaram, ou foram, ou serão; não se limitando a nomear, mas permitindo-nos ver que algo aconteceu, entrelaçando verbos e nomes. Assim, dissemos que ele discorre, e não somente que nomeia, e, a esse entrelaçamento, demos o nome de discurso.
TEETETO
— Justamente.
ESTRANGEIRO
— Assim, pois, do mesmo modo que, entre as coisas, umas concordam mutuamente, outras não; assim, também, nos sinais vocais, alguns deles não podem concordar, ao passo que outros, por seu mútuo acordo, criaram o discurso.
TEETETO
— Perfeitamente exato.
ESTRANGEIRO
— Mais uma pequena observação.
TEETETO
— Qual?
ESTRANGEIRO
— O discurso, desde que ele é, é necessariamente um discurso sobre alguma coisa; pois sobre o nada é impossível haver discurso.
TEETETO
— Certamente.
ESTRANGEIRO
— Não será necessário, também, que ele possua uma qualidade determinada?
TEETETO
— Sem dúvida.
ESTRANGEIRO
— Tomemos, pois, a nós mesmos, por objeto de nossa observação.
TEETETO
— E o que devemos fazer.
ESTRANGEIRO
— Vou pronunciar diante de ti um discurso, unindo um sujeito a uma ação por meio de um nome e de um verbo; e tu dirás sobre o que é esse discurso.
TEETETO
— Se puder, assim farei.
ESTRANGEIRO
— Teeteto está sentado, será um longo discurso?
TEETETO
— Não; aliás, bem curto.
ESTRANGEIRO
— Cabe-te, pois, dizer a propósito de quem e sobre o que ele discorre.
TEETETO
— Evidentemente, a propósito de mim e sobre mim.
ESTRANGEIRO
— E este?
TEETETO
— Qual?
ESTRANGEIRO
— Teeteto, com quem agora converso, voa.
TEETETO
— Aqui, ainda, só há uma resposta possível: a propósito de mim e sobre mim.
ESTRANGEIRO
— Mas cada um desses discursos tem, necessariamente, uma qualidade.
TEETETO
— Sim.
ESTRANGEIRO
— Que qualidade devemos, pois, atribuir a um e outro?
TEETETO
— Poderemos dizer que um é falso, outro verdadeiro.
ESTRANGEIRO
— Ora, aquele que, dentre os dois, é verdadeiro, diz, sobre ti, o que é tal como é.
TEETETO
— Claro!
ESTRANGEIRO
— E aquele que é falso diz outra coisa que aquela que é.
TEETETO
— Sim.
ESTRANGEIRO
— Diz, portanto, aquilo que não é.
TEETETO
— Mais ou menos.
ESTRANGEIRO
— Ele diz, pois, coisas que são, mas outras, que aquelas que são a teu respeito; pois, como dissemos, ao redor de cada realidade há, de certo modo, muitos seres e muitos não-seres.
TEETETO
— Certamente.
ESTRANGEIRO
— Assim, o último discurso que fiz a teu respeito deve, em primeiro lugar, e tendo em vista o que definimos como a essência do discurso, ser, necessariamente,  um dos mais breves.
TEETETO
— Pelo menos é o que resulta de nossas conclusões de há pouco.
ESTRANGEIRO
— Deve, em segundo lugar, referir-se a alguém.
TEETETO
— Certamente.
ESTRANGEIRO
— Ora, se não se refere a ti, não se refere, certamente, a ninguém mais.
TEETETO
— Evidentemente.
ESTRANGEIRO
— Não discorrendo sobre pessoa alguma, não seria então, nem mesmo um discurso. Na verdade demonstramos que é impossível haver discurso que não discorra sobre alguma coisa.
TEETETO
— Perfeitamente exato.
ESTRANGEIRO
— Assim, o conjunto formado de verbos e de nomes, que enuncia, a teu respeito, o outro como sendo o mesmo, e o que não é como sendo, eis, exatamente, ao que parece, a espécie de conjunto que constitui, real e verdadeiramente, um discurso falso.
TEETETO
— É a pura verdade.
ESTRANGEIRO
— E então? Não é evidente, desde já, que o pensamento, a opinião, a imaginação, são gêneros suscetíveis, em nossas almas, tanto de falsidade como de verdade?
TEETETO
— Como?
ESTRANGEIRO
— Compreenderás mais facilmente a razão se me deixares explicar em que eles consistem e em que diferem um dos outros.
TEETETO
— Explica.
ESTRANGEIRO
— Pensamento e discurso são, pois, a mesma coisa, salvo que é ao diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento.
TEETETO
— Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
— Mas a corrente que emana da alma e sai pelos lábios em emissão vocal, não recebeu o nome de discurso?
TEETETO
— É verdade.
ESTRANGEIRO
— Sabemos, além disso, que há, no discurso, o seguinte. . .
TEETETO
— O quê?
ESTRANGEIRO
— Afirmação e negação.
TEETETO
— Sim, sabemos.
ESTRANGEIRO
— Quando, pois, isto se dá na alma, em pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra para designá-lo além de opinião?
TEETETO
— Que outra palavra haveria?
ESTRANGEIRO
— Quando, ao contrário, ela se apresenta, não mais espontaneamente, mas por intermédio da sensação, este estado de espírito poderá ser corretamente designado por imaginação, ou haverá ainda outra palavra?
TEETETO
— Nenhuma outra.
ESTRANGEIRO
— Desde que há, como vimos, discurso verdadeiro e falso, e que, no discurso, distinguimos o pensamento que é o diálogo da alma consigo mesma, e a opinião, que é a conclusão do pensamento, e esse estado de espírito que designamos por imaginação, que é a combinação de sensação e opinião, é inevitável que, pelo seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam, algumas vezes, falsas.
TEETETO
— Naturalmente.
ESTRANGEIRO
— Percebes como descobrimos a falsidade da opinião e do discurso bem mais prontamente do que esperávamos, quando, há bem pouco, receávamos perder o nosso trabalho, empreendendo tal pesquisa?
TEETETO
— Sim, percebo


(Platão, Sofista, em Os Pensadores,São Paulo, Abril Cultural, 1972, p.195-198- 261e a 264b). 

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