Começamos com a Apologia, um dos primeiros, se não o primeiro dos diálogos de Platão, escrito ainda sob o forte impacto do julgamento e da condenação de Sócrates. Com efeito, a Apologia, ou Defesa, consiste no discurso de Sócrates perante o júri ateniense que o condenou. Acusado de desrespeitar as leis da cidade e os deuses tradicionais e de corromper a juventude ateniense, Sócrates é levado a julgamento. Recusa-se a apresentar uma defesa tradicional, o que poderia, dada sua habilidade, tê-lo livrado da condenação, mas defende sua liberdade de pensamento e o caráter crítico da filosofia em um verdadeiro desafio ao júri, que acaba por considerá-lo culpado. Na passagem que se segue, a parte final do dialogo, Sócrates rejeita a alternativa do exílio, mantendo-se coerente com seu estilo de vida e de filosofar, afirmando que “a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. [Danilo Marcondes]
"[...] Talvez alguém diga: “Sócrates, será que você não pode ir embora, nos deixar em paz e ficar quieto, calado?” Ora, eis a coisa mais difícil de convencer alguns de vocês. Pois se eu disser que tal conduta seria desobediência ao deus e que por isso não posso ficar quieto, vocês acharão que estou zombando e não acreditarão. E se disser que falar diariamente da virtude e das outras coisas sobre as quais me ouvem falar e questionar a mim e a outros é o bem maior do homem e que a vida que não se questiona não vale a pena viver, vão me acreditar menos ainda. E assim é, senhores, mas não é fácil convencê-los. Além do mais, não estou acostumado a pensar que mereço punição alguma. Se tivesse dinheiro, proporia uma multa, a maior que pudesse pagar, pois isso não me causaria nenhum dano. Mas o fato é que não tenho dinheiro, a não ser que queiram impor uma multa que eu possa pagar. Talvez eu possa pagar uma mina de prata [100 dracmas]. De modo que proponho essa penalidade. Mas Platão aqui presente, atenienses, e Críton, Critóbulo e Apolodoro aconselham-me a propor trinta minas, oferecendo-se como fiadores. Então proponho uma multa nesse valor e estes homens serão meus fiadores mais que suficientes.
Não passará muito tempo, atenienses, e serão conhecidos e acusados pelos detratores do Estado como assassinos de Sócrates, um sábio; pois sabem que quem quiser difamá-los dirá que fui sábio, embora não o seja. Agora, se tivessem esperado um pouco, o que desejam teria ocorrido espontaneamente: pois veem como estou velho, quão avançado em anos e próximo da morte. Digo isso não a todos, mas àqueles que votaram pela minha morte. E a eles também tenho algo mais a dizer. Talvez pensem, senhores, que fui condenado por me faltarem as palavras que os teriam feito absolver-me caso achasse correto fazer e dizer tudo para conseguir a absolvição. Longe disso. E, no entanto foi por uma falta que me condenaram, não todavia uma falta de palavras, mas de cinismo e descaramento, além da falta de vontade de dizer-lhes as coisas que vocês mais gostariam de ouvir. Vocês gostariam de me ouvir gemer e lamentar e dizer e fazer coisas que, insisto, são indignas de mim – coisas que vocês estão acostumados a ouvir de outros. Mas não achei que devesse, ante o perigo em que me encontrava, fazer coisa alguma indigna de um homem livre, nem me arrependo agora de ter feito minha defesa como fiz, mas prefiro morrer depois de uma defesa dessas a viver depois de uma defesa do outro tipo.
Pois nem no tribunal nem na guerra devemos, eu ou qualquer outro homem, tentar escapar da morte seja qual for o preço. Nas batalhas é muito comum um homem evitar a morte depondo as armas e implorando misericórdia aos perseguidores; e há muitas outras maneiras de escapar à morte ante perigos diversos quando se aceita fazer e dizer qualquer coisa. Mas, senhores, não é difícil escapar à morte; muito mais difícil é escapar a iniquidade, pois essa corre mais do que a morte. E agora, que sou velho e lento, me alcança a mais vagarosa das duas, enquanto meus acusadores, espertos e rápidos, são alcançados pela mais veloz. Ora, pois, irei embora, condenado por vocês e sentenciado à morte, e eles serão condenados pela verdade, por vilania e erro. Espero a minha pena; eles, a deles. Talvez as coisas tivesse, que ser assim e acho que estão bem.
E agora desejo fazer uma profecia a vocês que me condenaram; pois me encontro agora no momento em que os homens mais profetizam, que é pouco antes da morte. Digo-lhes, homens que me executam, que o castigo recairá sobre vocês logo após a minha morte, muito mais atroz que o castigo que me impõem. Porque fazem isso comigo na esperança de não ter que prestar contas de suas vidas, mas lhes digo que o resultado será bem diferente. Aqueles que irão forçá-los a prestar contas serão em números bem maior do que foram até aqui – homem a quem refreei, embora vocês não soubessem disso – e mais duros, na medida mesma em que mais jovens, e vocês ficarão mais ofendidos. Porque se pensam que condenado homens à morte evitam a reprovação dos seus atos errôneos, estão enganados. Essa escapatória de modo algum é possível nem honrosa; a sida mais fácil e digna não é eliminar os outros, mas tornar-se bom ao máximo. E com essa profecia para os que me condenaram, retiro-me.
Mas aos que votaram pela minha absolvição gostaria de falar sobre o que me aconteceu, enquanto as autoridades estão ocupadas e antes que chegue a hora de ir para o lugar onde devo morrer. Esperem comigo até lá, meus amigos, pois nada impede que conversemos enquanto ainda há tempo. Sinto que vocês são meus amigos e quero lhes mostrar o significado disso que me sucedeu.
Pois, juízes – e chamando-os dou-lhes o nome correto -, uma coisa maravilhosa aconteceu comigo. Pois até o oráculo costumeiro me falou com frequência, opondo-se a mim até nas menores questões se acaso eu pretendesse fazer algo que não devia; mas agora, como veem, recaiu sobre mim esse que deve ser e é geralmente considerado o maior dos males; e o sinal divino não se me opôs nem quando saí de casa de manhã nem quando cheguei aqui no tribunal ou em qualquer momento do meu discurso, embora em outras ocasiões tenha muitas vezes interrompido minhas palavras: agora, porém, neste caso, não se opôs a coisa alguma que eu quis fazer ou dizer. Que razão suponho para isso? Vou dizer-lhes. Isso que me aconteceu é sem dúvida uma coisa boa e os que acham a morte um mal devem estar errados. Prova disso, convincente, me foi dada, pois com certeza teria deparado o costumeiro sinal de oposição se estivesse indo ao encontro de alguma coisa boa.
Vejamos também de outra forma como há bom motivo para esperar que seja uma boa coisa. Pois de duas, uma: ou a morte é o nada e assim o morto não tem consciência de coisa alguma ou, como diz o povo, é uma mudança de estado, uma migração da alma deste lugar para o outro. Se for inconsciência, como um sono em que sequer sonhamos, a morte é um ganho maravilhoso. Pois acho que se comparasse uma noite de sono sem sonhos com as outras noites e dias de sua vida, para dizer, depois de pensar bem, quantos dias e noites teve na vida mais agradáveis do que aquela, qualquer pessoa – e não somente o homem comum mas mesmo o grande Rei da Pérsia – veria que foram poucos. Portanto, se tal for a natureza da morte, creio que é lucro, pois nesse caso toda a eternidade não parecerá mais que uma noite. Mas por outro lado, se a morte é, por assim dizer, uma mudança de casa daqui para algum outro lugar e se, como afirmam, todos os mortos estão lá, que bênção maior poderia existir, juízes? Pois se ao chegar ao outro mundo, deixando para trás os que se dizem juízes, o homem vai encontrar os verdadeiros juízes que ali se reuniram em julgamento, Minos, Radamanto, Éaco, Triptólemo e todos os outros semideuses que foram homens justos em vida, seria indesejável a troca de moradia?
Ora, o que não dariam vocês para encontrar Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero? Quero morrer muitas vezes se tudo isso for verdade, pois acharia a vida lá maravilhosa ao encontrar Palamedes e Ajax Telamônio ou quaisquer dos antigos que perderam a vida por julgamento injusto e comparar minha experiência com a deles. Acho que isso não seria desagradável. E maior prazer seria passar o tempo analisando e investigando as pessoas de lá, como faço com as daqui, para descobrir quem é sábio e quem pensa é mas não é.
Quanto vocês não dariam, juízes, para investigar aquele que comandou o grande exército contra Tróia ou Odisseu, Sísifo e inúmeros outros homens e mulheres que eu poderia mencionar? Reunir-se e conversar com eles, estudá-los, seria imensa felicidade. Pelo menos as pessoas lá não matam gente por causa disso, pois se é verdade que o que diz o povo, são sempre imortais, além de mais felizes sob outros aspectos que os homens daqui.
Mas vocês também, juízes, devem encarar a morte com esperança e não perder de vista esta verdade única: que nenhum mal pode atingir um homem bom, seja em vida ou após a morte, pois Deus não o abandona. Portanto, também isso que me aconteceu não foi por acaso; vejo plenamente que é melhor morrer agora e ficar livre dos problemas. Foi por essa razão que o sinal não interferiu e não estou de forma alguma zangado com os que me condenaram ou acusaram. No entanto, não foi com isso em mente que eles me acusaram e condenaram, mas pensando em me ferir. Pelo que merecem a culpa. Faço-lhes, porém, esta petição: punam meus filhos quando eles crescerem, senhores, perturbando-os como eu perturbei vocês; caso lhes pareça que eles se preocupam menos com a virtude do que com dinheiro ou outra coisa qualquer e pensam ser mais do que são, repreendam-nos como eu repreendi vocês por se preocuparem com o que não deveriam e acharem que significam alguma coisa quando não valem nada. Se fizerem isso, tanto eu quanto meus filhos teremos recebido o justo tratamento.
É chegado, porém o momento de partir. Vou morrer e vocês viverão, mas só Deus sabe a quem cabe o melhor quinhão”.
(2) Iniquidade: Pecado, culpa, crime, maldade e perversidade.
Platão, Apologia de Sócrates, trad: Pedro Sussenkid, in Marcondes, D., Textos Básicos de Filosofia: Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein, 2ª edição, Rio de Janeiro, ZAHAR, 2007.