[...] Façamos a seguinte
pergunta: o que é a linguagem? A resposta quase evidente é que a linguagem é um
conjunto de sinais fonéticos e/ou gráficos convencionais, criados pela
sociedade a fim de representar para o homem as coisas e suas relações, e assim
tornar possível a comunicação, necessária à conjugação da ação. É necessário
explorar isto que aí está dito.
Perguntemo-nos: qual é o processo
pelo qual a sociedade cria a linguagem? Uma das respostas possíveis é a que o homem
é mais ou menos semelhante a uma câmara fotográfica. Através dos seus sentidos
ele tiraria “retratos” do mundo, que seriam “revelados” na mente. A mente seria
uma máquina reduplicadora do mundo. E a linguagem, o que seria? Um sistema de sinais para representar essa
reduplicação. Imaginemos que um homem veja uma árvore. Lá fora está a árvore e
na mente dele está a imagem dela. Agora, se ele necessita comunicar a um
companheiro esta imagem, ele poderá simplesmente apontar para a árvore, se se
encontrarem próximos dela. Mas, se a
árvore estiver fora do alcance de sua vista? Nesse caso a comunicação, isto é,
a focalização das atenções dos dois homens sobre um mesmo objeto, só se dará se
eles dispuserem de um sinal que “signifique” a árvore, e lhes evoque a sua
imagem. Os sinais são criados para desempenhar esta função. Parece, portanto,
óbvio que as palavras têm por função
representar coisas.
Mas será que isso é tudo? Será a
linguagem um simples agregado de sinais, um inventário do mundo? O homem é um construtor
de mundos; sua atividade busca criar uma ordo
amoris, uma organização que seja expressiva dos seus valores e funcional
para a sua sobrevivência. Assim como o homem inventa ferramentas para ajudá-lo
nessa tarefa, ele também inventa uma linguagem. A linguagem, assim, não é uma cópia do real, mas antes uma
organização do mesmo. Na realidade, para o homem, o real é aquilo que ele
organiza.
Esta é uma das constatações muito
interessantes a que Kant chegou, através de sua análise do processo de conhecimento.
A mente não é passiva máquina de retratos! Ao contrário, ela é uma das formas de atividade do homem, em sua luta para criar
um mundo significativo. Isto se torna
muito claro quando examinamos a experiência simples de tentar aprender a falar
uma língua estrangeira. Todos os que passaram por essa experiência sabem que
não basta decorar o seu vocabulário básico. Porque, mais importante que o
vocabulário (que é o inventário das coisas) é a estrutura da língua, o seu espírito, que deriva da maneira específica
por que o povo que a fala organiza, entende e sente o mundo. Assim, para que
aprendamos a usar as palavras é necessário descobrir
a realidade estrutural e “espiritual” da lingual.
Há alguns fatos da psicologia que
talvez nos ajudem a compreender essa questão. A psicologia Gestáltica nos
mostrou que o ato pelo qual a mente transforma sensações em percepções (que
são estruturas cognitivas) é regido por certos modelos pré-existentes em nossa
mente. Os dados das sensações, que em si não têm sentido, são comparados pela
mente com certos modelos nela existentes, e que decifram a sua significação. As
sensações, em si, não interpretam a situação em que me encontro, a fim de
orientar meu comportamento. A interpretação (e, portanto, a orientação do
comportamento) começa com a percepção. Vamos dar um exemplo: Ouço uma sineta tocando.
Ela pode significar várias coisas: é hora de começar o trabalho numa fábrica,
uma ambulância está passando, incêndio, alarme de um ataque aéreo, etc. A
escolha de uma destas possíveis interpretações vai depender das formas que
regem a minha percepção. E somente a partir daí é que vou saber o que fazer.
O ato de conhecer é, portanto, um ato de re-conhecer:
a constatação da concordância entre dados sensórios novos e as formas memorizadas. Conheço o novo, dou-lhe um nome, somente depois de
reconhecê-lo por compará-lo com um modelo pré-existente em minha mente e que
organiza o processo pelo qual estruturo minha experiência. Há uma
memória estrutural sem a qual não podemos dar nomes às coisas, não podemos
reconhecer o nosso mundo. Estas formas não são inatas nem fixas. São
decorrentes da cultura e frequentemente o homem passa por verdadeiras
revoluções em sua consciência, pelas quais certas formas se desintegram e
outras aparecem.
(O suspiro dos oprimidos, São Paulo, Paulinas, 1984)