sexta-feira, 14 de março de 2014

A rede das palavras (Rubem Alves)

[...] Façamos a seguinte pergunta: o que é a linguagem? A resposta quase evidente é que a linguagem é um conjunto de sinais fonéticos e/ou gráficos convencionais, criados pela sociedade a fim de representar para o homem as coisas e suas relações, e assim tornar possível a comunicação, necessária à conjugação da ação. É necessário explorar isto que aí está dito.
Perguntemo-nos: qual é o processo pelo qual a sociedade cria a linguagem? Uma das respostas possíveis é a que o homem é mais ou menos semelhante a uma câmara fotográfica. Através dos seus sentidos ele tiraria “retratos” do mundo, que seriam “revelados” na mente. A mente seria uma máquina reduplicadora do mundo. E a linguagem, o que seria?  Um sistema de sinais para representar essa reduplicação. Imaginemos que um homem veja uma árvore. Lá fora está a árvore e na mente dele está a imagem dela. Agora, se ele necessita comunicar a um companheiro esta imagem, ele poderá simplesmente apontar  para a árvore, se se encontrarem  próximos dela. Mas, se a árvore estiver fora do alcance de sua vista? Nesse caso a comunicação, isto é, a focalização das atenções dos dois homens sobre um mesmo objeto, só se dará se eles dispuserem de um sinal que “signifique” a árvore, e lhes evoque a sua imagem. Os sinais são criados para desempenhar esta função. Parece, portanto, óbvio que as palavras têm por função representar coisas.
Mas será que isso é tudo? Será a linguagem um simples agregado de sinais, um inventário do mundo? O homem é um construtor de mundos; sua atividade busca criar uma ordo amoris, uma organização que seja expressiva dos seus valores e funcional para a sua sobrevivência. Assim como o homem inventa ferramentas para ajudá-lo nessa tarefa, ele também inventa uma linguagem. A linguagem, assim, não é uma cópia do real, mas antes uma organização do mesmo. Na realidade, para o homem, o real é aquilo que ele organiza.
Esta é uma das constatações muito interessantes a que Kant chegou, através de sua análise do processo de conhecimento. A mente não é passiva máquina de retratos! Ao contrário, ela é uma das formas de atividade do homem, em sua luta para criar um mundo significativo.  Isto se torna muito claro quando examinamos a experiência simples de tentar aprender a falar uma língua estrangeira. Todos os que passaram por essa experiência sabem que não basta decorar o seu vocabulário básico. Porque, mais importante que o vocabulário (que é o inventário das coisas) é a estrutura da língua, o seu espírito, que deriva da maneira específica por que o povo que a fala organiza, entende e sente o mundo. Assim, para que aprendamos a usar as palavras é necessário descobrir a realidade estrutural e “espiritual” da lingual.
Há alguns fatos da psicologia que talvez nos ajudem a compreender essa questão. A psicologia Gestáltica nos mostrou que o ato pelo qual a mente transforma sensações em percepções (que são estruturas cognitivas) é regido por certos modelos pré-existentes em nossa mente. Os dados das sensações, que em si não têm sentido, são comparados pela mente com certos modelos nela existentes, e que decifram a sua significação. As sensações, em si, não interpretam  a situação em que me encontro, a fim de orientar meu comportamento. A interpretação (e, portanto, a orientação do comportamento) começa com a percepção.  Vamos dar um exemplo: Ouço uma sineta tocando. Ela pode significar várias coisas: é hora de começar o trabalho numa fábrica, uma ambulância está passando, incêndio, alarme de um ataque aéreo, etc. A escolha de uma destas possíveis interpretações vai depender das formas que regem a minha percepção. E somente a partir daí é que vou saber o que fazer.
O ato de conhecer é, portanto, um ato de re-conhecer: a constatação da concordância entre dados sensórios novos e as formas memorizadas. Conheço o novo, dou-lhe um nome, somente depois de reconhecê-lo por compará-lo com um modelo pré-existente em minha mente e que organiza o processo pelo qual estruturo minha experiência.  Há uma memória estrutural sem a qual não podemos dar nomes às coisas, não podemos reconhecer o nosso mundo. Estas formas não são inatas nem fixas. São decorrentes da cultura e frequentemente o homem passa por verdadeiras revoluções em sua consciência, pelas quais certas formas se desintegram e outras aparecem.

(O suspiro dos oprimidos, São Paulo, Paulinas, 1984)