O texto a seguir
encontra-se no preâmbulo do livro “Apresentação da Filosofia”, do filósofo
francês contemporâneo André Comte-Sponville. Nele, por meio de uma linguagem
clara e atual, Sponville expõe o que pode ser entendido como uma definição de
filosofia. O filósofo explica que o usual
vocabulário simples e objetivo se justifica por sua intenção em “atingir” com
seu texto jovens que fazem a experiência de um primeiro contato com o
filosofar, assumindo como objetivo primeiro a compreensão de que a filosofia
mais do que uma ciência, é um constante e eterno interrogar-se acerca da vida.
Sem mais delongas, espero assim como o filósofo, que o mesmo se torne
instigante e o leve à busca e ao prazer do questionar.
Por Rafael Cavalcanti
Filosofar
é pensar por conta própria; mas só se consegue fazer isso de um modo válido
apoiando-se primeiro no pensamento dos outros, em especial dos grandes
filósofos do passado. A filosofia não é apenas uma aventura; também é um
trabalho, que requer esforço, leituras, ferramentas. Os primeiros passos
costumam ser rebarbativos, e já desanimaram mais de um.
[...]
O que é filosofia? Já me expliquei
muitas vezes a esse respeito, e faço-o mais uma vez. A filosofia não é uma
ciência, nem mesmo um conhecimento; não é um saber a mais: é uma reflexão sobre os saberes disponíveis. É por isso que não se
pode aprender filosofia, dizia Kant: só se pode aprender a filosofar. Como? Filosofando por conta própria: interrogando-se
sobre seu próprio pensamento, sobre o pensamento dos outros, sobre o mundo,
sobre a sociedade, sobre o que a experiência nos ensina, sobre o que ela nos
deixa ignorar... Encontrar no caminho as obras deste ou daquele filósofo
profissional, é o que se deve desejar. Com isso pensaremos melhor, mais
intensamente, mais profundamente. Iremos mais longe e mais depressa. Mas esse
autor, acrescentava Kant, “não deve ser considerado o modelo do juízo, mas
simplesmente uma ocasião de se fazer um juízo sobre ele, até mesmo contra ele”.
Ninguém
pode filosofar em nosso lugar. É evidente que a filosofia tem seus
especialistas, seus profissionais, seus professores. Mas ela não é uma
especialidade, nem uma profissão, nem uma disciplina universitária: ela é uma
dimensão constitutiva da existência humana. Uma vez que somos dotados de vida e
de razão, coloca-se para todos nós, inevitavelmente, a questão de articular uma
à outra essas duas faculdades. É claro que podemos raciocinar sem filosofar
(por exemplo, nas ciências), viver sem filosofar (por exemplo, na tolice ou na
paixão). Mas não podemos, sem filosofar, pensar nossa vida e viver nosso
pensamento: já que isso é a própria filosofia.
A
biologia nunca dirá a um biólogo como se deve viver, nem se se deve, nem mesmo
se se deve fazer biologia. As ciências humanas nunca dirão o que a humanidade
vale, nem o que elas mesmas valem. Por isso é necessário filosofar: porque é
necessário refletir sobre o que sabemos, sobre o que vivemos, sobre o que
queremos, e porque nenhum saber basta para empreender essa reflexão nem nos
dispensa dela. A arte? A religião? A política? São grandes coisas, mas também
devem ser interrogadas. Ora, a partir do momento em que as interrogamos, ou nos
interrogamos sobre elas um pouco profundamente, saímos delas, pelo menos em
parte: já damos um passo para dentro da filosofia. Nenhum filósofo contestará
que esta, por sua vez, tenha de ser interrogada. Mas interrogar a filosofia não
é sair dela, é entrar nela.
Por
que caminho? Segui aqui o único que conheço de fato, o da filosofia ocidental. O
que não quer dizer que não haja outros. Filosofar é viver com a razão, que é
universal. Como a filosofia poderia ser reservada a alguém? Ninguém ignora que
há, especialmente no Oriente, outras tradições especulativas e espirituais. Mas
não dá para falar de tudo e seria ridículo, de minha parte, pretender
apresentar pensamentos orientais que só conheço, na maioria, de segunda mão.
Não creio que a filosofia seja exclusivamente grega e ocidental. Mas,
evidentemente, como todo o mundo, estou convencido de que há no Ocidente, desde
os gregos, uma imensa tradição filosófica, que é a nossa, e é para ela, é nela,
que gostaria de guiar o leitor. A ambição das Apresentações, sob a brevidade do
objetivo, já é desmedidamente vasta. Isso deveria desculpar sua incompletude,
que faz parte da sua definição.
Viver
com a razão, dizia eu. Isso indica uma direção, que é a da filosofia, mas não
poderia esgotar seu conteúdo. A filosofia é questionamento radical, busca da
verdade global ou última (e não, como nas ciências, desta ou daquela verdade
particular), criação e utilização de conceitos (mesmo que isso também se faça
em outras disciplinas), reflexividade (volta do espírito ou da razão para si mesmo:
pensamento do pensamento), meditação sobre sua própria história e sobre a
história da humanidade, busca da maior coerência possível, da maior
racionalidade possível (é a arte da razão, por assim dizer, mas que
desembocaria numa arte de viver), construção, às vezes, de sistemas,
elaboração, sempre, de teses, de argumentos, de teorias... Mas também é, e
talvez antes de mais nada, crítica das ilusões, dos preconceitos, das
ideologias. Toda filosofia é um combate. Sua arma? A razão. Seus inimigos? A
tolice, o fanatismo, o obscurantismo. Seus aliados? As ciências. Seu objeto? O
todo, com o homem dentro. Ou o homem, mas no todo. Sua finalidade? A sabedoria:
a felicidade, mas na verdade. Tem pano para muita manga, como se diz; ainda
bem, porque os filósofos gostam de arregaçá-las!
Na
prática, os objetos da filosofia são incontáveis: nada do que é humano ou
verdadeiro lhe é estranho. Isso não significa que todos tenham a mesma
importância. Kant, numa passagem célebre da sua Lógica, resumia o domínio da filosofia em quatro questões: Que posso saber? Que devo fazer? O que me é
permitido esperar? O que é o homem? “As três primeiras questões remetem à
ultima”, observa Kant. Mas as quatro desembocam, eu acrescentaria, numa quinta,
que é sem dúvida, filosófica e humanamente, a questão principal: Como viver? A partir do momento em que
tentamos responder a essa pergunta de modo inteligente, fazemos filosofia. E,
como não se pode evitar formulá-la, é forçoso concluir que só se escapa da
filosofia por tolice ou obscurantismo.
Deve-se
fazer filosofia? Uma vez que fazemos essa pergunta, em todo caso, uma vez que
tentamos responder a ela seriamente, já estamos fazendo filosofia. Isso não
quer dizer que a filosofia se reduza à sua própria interrogação, menos ainda à
sua autojustificação. Porque também fazemos filosofia, pouco ou muito, bem ou
mal, quando nos interrogamos (de maneira ao mesmo tempo racional e radical)
sobre o mundo, sobre a humanidade, sobre a felicidade, sobre a justiça, sobre a
liberdade, sobre a morte, sobre Deus, sobre o conhecimento... E quem poderia
renunciar a fazê-lo? O ser humano é um animal filosofante: só pode renunciar à
filosofia renunciando a uma parte da sua humanidade.
É
preciso filosofar, portanto: pensar tão longe quanto pudermos, e mais longe do
que sabemos. Com que finalidade? Uma vida mais humana, mais lúcida, mais
serena, mais razoável, mais feliz, mais livre... É o que se chama
tradicionalmente de sabedoria, que seria uma felicidade sem ilusões nem
mentiras. Podemos alcançá-la? Nunca totalmente, sem dúvida. Mas isso não nos
impede de tender a ela, nem de nos aproximarmos dela. “A filosofia”, escreve Kant,
“é, para o homem, esforço em direção à sabedoria, esforço sempre não
consumado.” Mais uma razão para empreender esse esforço sem mais tardar.
Trata-se de pensar melhor para viver melhor. A filosofia é esse trabalho; a
sabedoria, esse repouso.
O
que é a filosofia? As respostas são tão numerosas, ou quase, quantos os
filósofos. O que não impede, todavia, que elas se cruzem ou convirjam para o
essencial. No que me diz respeito, tenho um fraco, desde os meus anos de
estudo, pela resposta de Epicuro: “A filosofia é uma atividade que, por
discursos e raciocínios, nos proporciona a vida feliz.” É definir a filosofia
por seu maior êxito (a sabedoria, a beatitude), o que, mesmo que o êxito nunca
seja total, é melhor do que encerrá-la em seus fracassos. A felicidade é a
meta; a filosofia, o caminho. Boa viagem a todos!
Comte-Sponville, André. Apresentação da Filosofia. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.